Divulga aqui
Jean moto

Se racismo é cotidiano, antirracismo também precisa ser, diz pedagoga

A história e cultura afrobrasileiras são parte obrigatória dos currículos escolares brasileiros há quase 20 anos, quando foi publicada a Lei 10.

Por MT Giro em 29/07/2023 às 18:52:09

A história e cultura afrobrasileiras são parte obrigatória dos currĂ­culos escolares brasileiros hĂĄ quase 20 anos, quando foi publicada a Lei 10.639/ 2003, mas o cumprimento dessa lei estĂĄ longe de ser universalizado. Uma pesquisa da organização não governamental Todos pela Educação mostrou que somente metade das escolas tinham projetos pedagógicos antirracistas em 2021, e essa proporção estava em queda.

Para a pedagoga Clélia Rosa (foto) consultora e pesquisadora das relações étnico-raciais na educação, hĂĄ um descompromisso institucional com o respeito a essa lei. Essa indiferença, somada ao mito da democracia racial, traz um prejuĂ­zo ético na formação dos estudantes.

"Quando a escola diz, nos seus currĂ­culos, que forma cidadãos crĂ­ticos, cidadãos reflexivos, que possam atuar frente às situações, etc e etc, como é que vocĂȘ forma um cidadão crĂ­tico que não compreende a pauta racial num paĂ­s majoritariamente negro? Como é que vocĂȘ forma um cidadão crĂ­tico que silencia diante de uma situação de racismo? Como é que se forma um cidadão crĂ­tico que não sabe a real história da fundação e do desenvolvimento cultural, polĂ­tico e social desse paĂ­s? Então, é um prejuĂ­zo enorme para todas as pessoas", critica a pedagoga, em entrevista à AgĂȘncia Brasil.

Palestrante da primeira Edição da Eduko, que acontece nesta sexta-feira e sĂĄbado em Belo Horizonte, Clélia Rosa defende que um projeto pedagógico antirracista sério depende de formação continuada dos docentes e não pode se restringir a datas comemorativas ou episódios especĂ­ficos. Nesse contexto, ela exalta o papel de famĂ­lias negras, que tem impulsionado esse avanço ao cobrar essa discussão nas escolas.

AgĂȘncia Brasil: Que passo além o projeto pedagógico precisa dar para ser antirracista?

Clélia Rosa: O passo além é trazer esse conteĂșdo em todos os dias letivos do ano. Eu costumo dizer que se o racismo é cotidiano, o anti-racismo também precisa ser. O projeto pedagógico não pode tratar a questão racial no seu currĂ­culo de maneira efĂȘmera, esperando uma data especĂ­fica, um acontecimento especĂ­fico. O passo além é o que baliza a Lei 10.639, que é a inclusão desse conteĂșdo em todo currĂ­culo da educação bĂĄsica, da educação infantil ao final do ensino médio. Vou falar de uma maneira simples, embora não seja: o passo além é fazer o que tem que ser feito. Embora, em uma sociedade racista, como a nossa, fazer o que tem que ser feito é uma complexidade muito grande, porque a gente precisa enfrentar as inĂșmeras barreiras que o racismo coloca.

AgĂȘncia Brasil: Este ano a Lei 10.639 completa 20 anos, mas a ONG Todos Pela Educação divulgou uma pesquisa que mostra que os projetos antirracistas ainda estão apenas em metade das escolas, e houve até uma queda nos Ășltimos anos. Por que a gente estĂĄ tão longe de universalizar esse ensino previsto em lei?

Clélia Rosa: EstĂĄ longe porque a gente precisa ainda, na minha perspectiva, vencer o mito da democracia racial, que imperou e, de certa forma, impera fortemente nas instituições e na escola também. Eu acho que existe ainda uma dificuldade também de se compreender o que é o racismo e, na medida em que não se compreende o que é de fato essa opressão, fica muito mais difĂ­cil combater. No âmbito dos 20 anos da lei, o que a gente vai observando é, de certo modo, um descompromisso das instituições pĂșblicas e privadas. A dificuldade são essas escolas que ainda não entenderam o seu papel e a importância dessa base legal. Isso somado à ideia do mito da democracia racial e somado ainda a uma ideia de que a questão enfrentamento ao racismo no Brasil é um problema das pessoas negras. Infelizmente, essa ideia ainda paira.

AgĂȘncia Brasil: Para vocĂȘ que acompanha a implementação da lei nesses 20 anos, como vocĂȘ avalia que os obstĂĄculos a ela mudaram? Eles são os mesmos de 2003? HĂĄ obstĂĄculos novos?

Clélia Rosa: Uma coisa que mudou substancialmente foi a produção de material, de referencial teórico de qualidade para balizar todas as prĂĄticas. A gente estĂĄ falando de 20 anos da Lei 10.639 ao mesmo tempo em que estamos falando de 20 anos de ações afirmativas no Brasil, o que acarretou o aumento da entrada de estudantes negros e negras nas universidades e nas pesquisas de pós-graduação, mestrado e doutorado. A produção cientĂ­fica, a partir de pesquisadores negros e negras, aumentou, do mesmo modo que aumentou significativamente a produção de literatura infantil e infanto-juvenil. Não hĂĄ mais motivo de a gente continuar lendo para as crianças as mesmas histórias e apresentando os mesmos autores. A barreira que existia antes, em que se dizia que não havia material disponĂ­vel, que não havia referĂȘncia disponĂ­vel, não existe mais. E, felizmente, a produção só tende a aumentar. Nesse sentido entendo que uma barreira importante que precisa ser derrubada é o comprometimento das instituições, o que estĂĄ ligado a uma ampla e efetiva formação continuada dos seus docentes. Sem formação, fica muito difĂ­cil implementar e fazer isso ir para a sala de aula de maneira séria e potente.

AgĂȘncia Brasil: Sem essa formação continuada, o que acontece?

Clélia Rosa: Ao longo desses 20 anos, o que a gente, infelizmente, também tem notĂ­cia é de prĂĄticas muitas vezes equivocadas, de prĂĄticas racistas ainda que vestidas de uma boa intenção, que estão na contramão do que é potĂȘncia, reforçando estereótipos e estigmas. Então, a formação continuada do corpo docente, a formação continuada em serviço, ela é uma estratégia extremamente importante para implementação efetiva da lei. Sem a formação, fica muito difĂ­cil fazer um trabalho sério e coerente. Sem a formação, a questão racial vira uma coisa efĂȘmera, vira uma coisa de data comemorativa, e não é disso que a gente tĂĄ falando. A gente estĂĄ falando de um ano letivo com mais de 200 dias.

AgĂȘncia Brasil: Como pedagoga e consultora, quais erros mais frequentes vocĂȘ vĂȘ nessa tentativa de trazer o antirracismo para o projeto pedagógico?

Clélia Rosa: Um erro frequente é não entender que se trata de uma questão do Brasil, ou seja, de todos nós. Nesse sentido, não tem a ver se vocĂȘ tem ou não um aluno negro na sua sala. Sobretudo quando a gente estĂĄ falando das escolas privadas. Se a gente ainda tem um nĂșmero expressivo de escolas pĂșblicas que não cumprem a lei, o nĂșmero de escolas privadas é muito maior. O nĂșmero de estudantes negros nas escolas privadas, estatisticamente falando, é menor do que na rede pĂșblica, mas isso não deve ser de forma alguma um motivo para não trabalhar esse assunto. Um erro frequente é entender que esse é um assunto da população negra, que preciso ter um aluno negro, como se esse conteĂșdo fosse endereçado a esse aluno. Outro erro é não ampliar o repertório de referĂȘncias e narrativas negras e continuar utilizando as mesmas narrativas eurocĂȘntricas, brancocĂȘntricas e não colocando pesquisadores e narrativas negras como protagonistas do trabalho pedagógico. Um apego a referĂȘncias eurocentradas. Essas referĂȘncias foram importantes nos 1980, 1990, mas quando a gente olha para o futuro, para a educação do presente e pensa no futuro, a gente precisa ter coragem de abandonar alguns referenciais e abraçar outros que condizem com o projeto de paĂ­s e de sociedade que a gente quer.

AgĂȘncia Brasil: E esse é um assunto para os professores de todas as disciplinas, inclusive de exatas?

Clélia Rosa: Sem dĂșvida. O texto da lei é muito enfĂĄtico e diz que esse conteĂșdo precisa ser trabalhado em todo o currĂ­culo escolar. E aĂ­, tem um destaque para as ĂĄreas de História, Artes e Literatura. Só que a interpretação é como se tivesse focado nelas e engolido o que vem antes, que é todo o currĂ­culo escolar. Quando a gente vai para a ĂĄrea das ciĂȘncias biológicas e exatas, para que esses docentes consigam trazer esse repertório, eles vão precisar voltar para as suas bases de estudo, para as referĂȘncias que eles tĂȘm. Como é que a gente faz uma educação emancipatória sem usar referĂȘncias emancipatórias? Esse professor vai precisar dar alguns passos em outras direções. Não é dar passos atrĂĄs. É dar passos para se aproximar de outras produções e referenciais teóricos. É entender que a produção do conhecimento não é exclusividade da Europa. A produção de saberes existe em outras partes do mundo, e no caso conteĂșdo africano e afrobrasileiro, essas ĂĄreas de conhecimento precisam se voltar para continente africano e reconhecer a produção cientĂ­fica dos pesquisadores africanos e dos pesquisadores negros em diĂĄspora. É tirar a Europa da posição de centro Ășnico do saber. Outros cantos do planeta produziram saberes inclusive anteriores. É um exercĂ­cio de coragem e de mudança de rota.

AgĂȘncia Brasil: E a formação de novos professores mudou para atender a essa nova realidade?

Clélia Rosa: O curso de pedagogia também prevĂȘ que haja disciplinas na graduação que abordem a Lei 10.639 e que falem sobre educação e diversidade. Então, essa nova geração de professores certamente estĂĄ tendo acesso a conteĂșdos que eu, por exemplo, que me formei como pedagoga no final dos anos 1990, não tive. Eu fui formada, a minha base de formação nas questões raciais, foi primeiro no movimento negro, de mulheres negras, na luta dos movimentos sociais. E, depois, de forma acadĂȘmica, jĂĄ na pós-graduação. Quando eu me formei, esse era um assunto que sequer era tratado.

AgĂȘncia Brasil: Voltando o olhar para os alunos, negros e brancos, qual é o prejuĂ­zo que eles tĂȘm por estarem em escolas que desrespeitam essa lei?

Clélia Rosa: Eu vejo como um prejuĂ­zo ético e na formação de cidadania dessas crianças e jovens, que se dĂĄ também na escola. A escola é um espaço importante para a nossa formação. Com a ausĂȘncia desse conteĂșdo, essas crianças e jovens não conseguem, ao longo da sua trajetória escolar, se conectar com a real história desse paĂ­s. Não conseguem entender o porquĂȘ da ausĂȘncia de pessoas negras nos espaços de poder econômico, de poder polĂ­tico e de poder cientĂ­fico, e normalizam essa ausĂȘncia. Quando a escola diz, nos seus currĂ­culos, que forma cidadãos crĂ­ticos, cidadãos reflexivos, que possam atuar frente às situações etc e etc, como é que vocĂȘ forma um cidadão crĂ­tico que não compreende a pauta racial num paĂ­s majoritariamente negro? Como é que vocĂȘ forma um cidadão crĂ­tico que silencia diante de uma situação de racismo? Como é que se forma um cidadão crĂ­tico que não sabe a real história da fundação e do desenvolvimento cultural, polĂ­tico e social desse paĂ­s? Então, é um prejuĂ­zo enorme e é para todas as pessoas. A professora Nilma Lino Gomes diz que não trabalhar na perspectiva antiracista é também negar o direito cognitivo dessas crianças e jovens, enquanto cidadão, sujeito polĂ­tico e profissional. Não tenho dĂșvidas de que a ausĂȘncia desse conteĂșdo é prejudicial para todas as crianças e todos os jovens, independentemente do seu pertencimento racial.

AgĂȘncia Brasil: O que esse conteĂșdo promove de resultado positivo para os estudantes negros e indĂ­genas, especificamente?

Clélia Rosa: Sobretudo, esse jovem e essa criança negra e indĂ­gena veem os seus iguais em situações de protagonismo. Porque a escola que nos formou, a escola que formou a criança que eu era no finalzinho dos anos 1970, nos anos 1980, colocou sempre a população negra à margem, nas bordas do desenvolvimento do Brasil. E, muito mais tarde, eu fui aprender que, embora a população negra estivesse vivendo à margem, ela foi o centro da construção do Brasil. O protagonismo da construção desse paĂ­s é e foi feito por mãos negras. Não se trata de uma contribuição. A população negra não contribuiu para a formação do Brasil, ela formou o Brasil. Do mesmo modo que a população indĂ­gena. A fundação do Brasil é da população indĂ­gena. Sem as mãos negras e indĂ­genas, sem esses saberes, o Brasil não teria se constituĂ­do. É lógico que hĂĄ também os saberes europeus, mas a marca da violĂȘncia foi e é muito grande, e deixa a população negra e indĂ­gena à margem. Quando a gente traz para as crianças que não fomos a margem, mas o centro da construção desse paĂ­s, através de nossos saberes e tecnologias ancestrais, é um mecanismo potente para a construção da autoestima e para um deslocamento que nos coloca como produtores e detentores de conhecimento.

AgĂȘncia Brasil: Os avanços que a lei jĂĄ proporcionou são perceptĂ­veis nas crianças e adolescentes que estão saindo dessas escolas em que a educação antirracista foi à frente?

Clélia Rosa: Não teria como dimensionar isso olhando para o Brasil como um todo. Uma pesquisa recente do Instituto Alana, realizada junto com o Geledés - Instituto da Mulher Negra que percorreu os 5 mil municĂ­pios do Brasil, revela algo que é muito assustador: 70% das redes municipais de educação não cumprem a lei e não tĂȘm prĂĄticas antirracistas. É um nĂșmero muito expressivo. Mas acredito que, nas escolas que tiveram compromisso da gestão e de toda a equipe, certamente seus estudantes saem com outra visão de mundo e de sociedade. Mas não posso deixar de ressaltar que, para além do trabalho dessas escolas, hĂĄ também o trabalho de muitas famĂ­lias negras que vĂȘm investindo e falando sobre a questão racial em suas casas. Eu sou de uma geração que, na minha casa, o racismo não era um assunto que se falava em casa, à mesa. SofrĂ­amos o racismo e todo o impacto do racismo estrutural e da violĂȘncia do Estado, mas não era um assunto trazido verbalmente. Isso mudou. As famĂ­lias tĂȘm falado sobre isso. Eu sou mãe e falo sobre isso com as minhas filhas. As famĂ­lias romperam com o silĂȘncio. Essa juventude muito mais engajada e conhecendo seus valores, valorizando sua ancestralidade, sua história, é trabalho de algumas escolas que fizeram uma educação antirracista mas é também uma nova forma de educar dentro de casa. Muitas escolas iniciam seus projetos antirracistas, dão o pontapé inicial nessa perspectiva porque as famĂ­lias foram lĂĄ bater na porta. A partir dessa famĂ­lia que não silencia, muitas escolas foram impulsionadas e começaram a se aproximar de todo um trabalho que jĂĄ existe. E as crianças negras que jĂĄ tĂȘm outra mentalidade e falam sobre isso recebem um reforço da famĂ­lia e da escola, estão sendo duplamente amparadas.

AgĂȘncia Brasil: Seguindo nesse ponto da comunidade escolar por um sentido inverso, a gente vĂȘ hoje alunos e pais filmando professores, trazendo pautas extremistas e fundamentalismos religiosos para a escola. Qual é o peso e a dificuldade que isso estĂĄ tendo contra o avanço da educação antirracista?

Clélia Rosa: O fundamentalismo é um complicador em todos os sentidos. Quando os pais vão para a escola criticar um projeto, dizer que são contra, que querem que seus filhos não assistam a determinado conteĂșdo, é fundamental que nós entendamos o funcionamento da lei e tenhamos isso como nosso aliado. Somos nós, educadores, que sabemos o que precisa ser ensinado. A gente precisa mostrar para essas famĂ­lias que quem entende do riscado da escola dos muros da escola para dentro é o educador, é a gestão da escola. Não é uma famĂ­lia fundamentalista que vai dizer como eu vou trabalhar, primeiro porque eu sou formada e tenho diploma para isso, e segundo porque tenho uma legislação que baliza a minha prĂĄtica. Existe uma fundamentação teórica e uma base legal para fazer esse trabalho. Cada vez mais nós, educadores e comunidade escolar, temos que nos agarrar à base legal. Pra resumir, costumo dizer que uma famĂ­lia pode chegar na escola com seu senso comum, com seu achismo, dizendo que viu algo na televisão, no grupo de Whattsapp, no Tik Tok. Mas ela não pode sair da escola com essas informações. Ao chegar com essas informações equivocadas, eu tenho que dar as informações que valem, tenho que mostrar como funciona.

Fonte: AgĂȘncia Brasil

Comunicar erro
Queimada disk 193
Delegacia Virtual
Chama no Zap

ComentĂĄrios

mt giro