A presidente do Departamento CientĂfico de Prevenção e Enfrentamento das Causas Externas na Infância e AdolescĂȘncia da SBP, Luci Pfeiffer, disse que, "com certeza" hĂĄ um nĂșmero muito maior subnotificado. "São aqueles casos [da criança ou adolescente] como se caĂsse, tomou remédio a mais, e ali tinha o desejo de morte", explicou a pediatra nesta quinta-feira (28) à AgĂȘncia Brasil.
Ao todo, no perĂodo pesquisado, o Brasil registrou 9.954 casos de suicĂdio ou morte por lesões autoprovocadas intencionalmente. "Todo dia morrem trĂȘs crianças por suicĂdio no Brasil", disse Luci Pfeiffer, alertando para a existĂȘncia de todo um arsenal de estĂmulos nas redes sociais de autoagressão e do suicĂdio como uma saĂda. "DaĂ a importância de se falar sobre isso, dos sinais de alerta para procurar ajuda, "porque hĂĄ um problema a tratar".A maioria dos casos estĂĄ consolidada entre os adolescentes. Foram 8.391 óbitos (84,29%) na faixa etĂĄria de 15 a 19 anos; e 1.563 mortes (15,71%) na faixa de 10 a 14 anos de idade. "Na verdade, até os 26 anos, é o maior nĂșmero de casos no paĂs e no mundo também".
De acordo com os nĂșmeros apurados pela SBP, a maior prevalĂȘncia de suicĂdio ocorre entre os jovens do sexo masculino. Ao longo da série histórica, de 2012 a 2021, os rapazes representam mais que o dobro de casos sendo homens 6.801 episódios (68,32%) e mulheres 3.153 (31,68%). JĂĄ pela distribuição geogrĂĄfica, os estados que apresentam as maiores taxas, englobando meninos e meninas, são São Paulo (1.488), seguido de Minas Gerais (889); Rio Grande do Sul (676); ParanĂĄ (649); e Amazonas (578).
Luci Pfeiffer disse que hĂĄ uma falha grande nos registros das tentativas de suicĂdio. "Dificilmente uma criança ou adolescente chega à morte na primeira tentativa. E elas devem ser levadas muito a sério", alerta.
Na avaliação da especialista, muitas famĂlias consideram esses episódios como algo que a criança ou o jovem fez para chamar a atenção. "De modo geral, são cometidas duas ou trĂȘs tentativas até que eles consigam chegar à morte. Por isso, nós terĂamos ainda um tempo de prevenção secundĂĄria".
Segundo a médica, as meninas são as que mais tentam o suicĂdio, enquanto os meninos o fazem de forma mais eficiente e com agressividade direta. Os pais, responsĂĄveis, médicos e profissionais que trabalham com a população pediĂĄtrica devem estar atentos aos primeiros sinais. "Porque isso vem jĂĄ de algum tempo", observou a doutora.
Segundo a especialista, existem fatores de risco muito importantes como, por exemplo, a violĂȘncia intrafamiliar, não apenas como espancamentos. "Muitas vezes, os pais, sem perceber, agridem o filho com palavras como "vocĂȘ não devia ter nascido", "vocĂȘ é insuportĂĄvel" ou "vocĂȘ não serve para nada". Isso acontece em todas as classes sociais. Existe uma violĂȘncia fĂsica que fatalmente coloca na criança ou adolescente a falta de lugar, a falta de amor dos pais, que são pilares da personalidade".
Luci Pfeiffer explicou que, hoje, hĂĄ um enfraquecimento dos vĂnculos reais entre pais e filhos. "Muitos pais só sabem que o filho estĂĄ desistindo da vida na primeira tentativa. HĂĄ sinais, contudo, que podem despertar o alerta. Crianças tristes, que deixam de brincar, são um exemplo".
"O desejo de morte vai fazer com que essa criança ou adolescente cada vez se afaste dos seus pares, dos prazeres da vida, como brincar, jogar, namorar, de ter colegas e amigos. Primeiro, hĂĄ o isolamento e o afastamento da famĂlia, depois isolamento dos seus pares, das fontes que dão satisfação, até que, cada vez mais, eles buscam atitudes de risco. AĂ, vĂȘm as autoagressões de muitas formas, como cortes, anorexia, bulimia", alerta a especialista.
De acordo com Luci Pfeiffer, a causa do suicĂdio de crianças e adolescentes é multifatorial. Tem sempre algo da famĂlia, do desenvolvimento, "e uma exigĂȘncia excessiva de todos os cantos".
"Atualmente, as mĂdias e redes sociais não só estimulam a autoagressão, como colocam padrões de normalidade de pertencer a grupos com exigĂȘncias, a partir de crianças de 7 a 8 anos, como bater na professora, fazer mais faltas no jogo de futebol. E essas exigĂȘncias tĂȘm um contraponto de famĂlia e escola, que leva a criança ou adolescente a tentar a morte porque não suporta mais a dor de não ser importante para ninguém ou de não se sentir importante".
Esse isolamento leva à ideia de que o sofrimento acaba com a morte. "Eu sempre pergunto para eles: quem garante? O que vai acontecer depois? Não seria melhor lutar pela vida agora?".
Luci Pfeiffer assegura que não existe nenhuma medicação no mundo que tenha interrompido o caminho da violĂȘncia, que é a autoagressão. O bullying na escola jĂĄ é o segundo passo para uma sequĂȘncia de violĂȘncia e para a criança ou adolescente começar a pensar no suicĂdio como uma saĂda. "E aquilo cresce como em um funil. Eles vão colocando a insatisfação dos pais e da famĂlia, o fracasso na escola, o fracasso com os parceiros e com os pares, até que eles entram na parte final do funil. AĂ é bem mais rĂĄpido. Vão se concentrando todas as possibilidades, até que eles planejam como morrer".
A presidente do Departamento CientĂfico de Prevenção e Enfrentamento das Causas Externas na Infância e AdolescĂȘncia da SBP lamentou que não haja no Brasil leis que protejam as crianças e adolescentes das mĂdias sociais, que fazem um marketing de consumo e propiciam meios para o suicĂdio, embora isso seja um crime pelo artigo 122 do Código Penal.
A recomendação da especialista é que, aos primeiros sinais, a criança deve ser levada a um pediatra para uma avaliação geral, inclusive por uma equipe interdisciplinar e por profissionais da saĂșde mental, como psicólogo, psicanalista, psiquiatra, especialistas em infância e adolescĂȘncia. Como se trata, ao mesmo tempo, de uma violĂȘncia, é preciso chamar também a rede de proteção, coisa que, dificilmente, as pessoas fazem. A tentativa de suicĂdio é de notificação obrigatória, destacou.
Frente a suspeitas de sofrimento psĂquico, a rede de proteção, integrada pelo conjunto da escola, pais e unidades de assistĂȘncia à saĂșde, como os Centros de ReferĂȘncia da AssistĂȘncia Social (Cras) e Centros de ReferĂȘncia de AssistĂȘncia Social (Creas), precisa ser acionada, independente do padrão econômico e sociocultural da famĂlia, para se saber que outras origens pode estar o desejo de morte. "E levantar o histórico desde a gravidez e do desejo do filho até para onde ele chegou. Os pais e a escola precisam buscar ajuda e acompanhamento médico, tanto de profissionais da saĂșde mental e do pediatra que coordene essa equipe interdisciplinar, para que a gente possa proteger o que nós temos de mais valioso, que é a vida de crianças e adolescentes".
Fonte: AgĂȘncia Brasil